As mulheres foram subjugadas desde a criação da linguagem (da palavra, do discurso) em todas as culturas. Após tanto tempo nos bastidores, as mulheres se emanciparam. Saindo do lugar de debilidade, passando pelo papel normativo de mãe e dona casa, até conseguir liberdade financeira e social, a mulher na sociedade contemporânea, decidiu atuar enquanto protagonista. As mulheres apreciam hoje, não apenas o exercício de direitos políticos e jurídicos, mas o direito à sua liberdade sexual – para além da escolha antes quase obrigatória do casamento – o direito à liberdade de estar com quem, quando e onde quiserem. Mas, questiona-se aqui o quanto esta liberdade agora disponível poderia pressupor mais trabalho para uma mulher, mais opções, mais funções e mais escolhas. No mês que se celebra o dia internacional da mulher, é relevante refletir sobre esta função trabalhosa de ser mulher no mundo moderno, a qual muitas vezes está cercada de ansiedade, estresse, angústia e sacrifício.
A ideia fixa de fragilidade, infantilidade, inferioridade e até loucura que acompanhou a mulher por séculos, apesar de tentativas anteriores, só passou a ser mais seriamente repensada a partir da Revolução Francesa no final do século XVIII. Entre os séculos 15 e 18 já se observa, na história, temas dedicados a expor a condição de opressão vivida pelas mulheres, as quais não tinham até então qualquer participação social, temas que, à época, não ganharam força. Parece ser realmente a partir da Revolução que se acende uma fagulha para que a mulher inicie um lento e tortuoso processo de passagem do mundo privado para o mundo público (Penna, 2014).
O século XIX, ainda se apresenta como um mundo social voltado apenas para os homens. À mulher cabe ocupar o lar, a vida doméstica – com todos seus anseios destinados à família. Com o eminente avanço das ciências, em especial da medicina, é que se fortalece o discurso sobre a fragilidade física do sexo feminino, que acaba por reforçar ainda mais as práticas de dominação. Segundo citado por Penna (2014), o renomado filósofo político francês Proudhon, defendia – e assim definia o pensamento daquele período – que as “funções da mulher inscrevem-se em sua conformação: uma vagina para receber, um ventre para carregar, seios para amamentar… Nenhum lugar além do lar”.
É exatamente neste período que se dá o conceito de família nuclear tradicional que, até então, podia-se dizer que vigorava nos tempos mais atuais, no qual se estabelecem ideais em torno do masculino e do feminino: o primeiro enquanto provedor e viril, e a segunda enquanto sustentadora desta virilidade através da submissão, de padrões pré-estabelecidos de feminilidade e da maternidade.
No entanto, na segunda metade do século 19, começa a despontar um contexto diferente: o da sociedade liberal europeia que começava a emergir e, junto da qual, emerge também um movimento emancipatório das mulheres. O filósofo, economista e político britânico, John Stuart Mill, que também foi parlamentar, foi o primeiro britânico a propor que as mulheres deveriam ter direito ao voto. Mais adiante, suas ideias ganharam destaque ao propor o princípio geral de emancipação das mulheres a partir da extinção das desigualdades dentro do núcleo familiar, da admissão das mulheres em todos os postos de trabalho e da oferta de instrução educacional do mesmo nível ofertado aos homens.
A partir de então se formaram inúmeros outros movimentos de luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, que até hoje, estão em processo de consolidação. A partir de 1960, nos Estados Unidos por exemplo, surge o pensamento mais abrangente (e mais contemporâneo) de uma busca de igualdade não mais apenas no âmbito jurídico – como o pensamento anterior de emancipação, cuja reivindicação central era a luta pela igualdade (jurídica, política e econômica) – mas sim de uma nova demanda pela “libertação” total das mulheres, a qual coloca que, apesar das inúmeras conquistas, ainda existe na sociedade uma opressão velada em relação às mulheres que precisa ser combatida (do campo do pensamento).
Neste ponto, é interessante notar, conforme destaca Birman (2007), que todo este movimento das mulheres de ocupar novos lugares sociais, parece ter tido condições de se concretizar efetiva e amplamente a partir das possibilidades de controle da reprodução sexual, ou seja, a partir da invenção de procedimentos anticoncepcionais. Já que até então, as mulheres ficavam à mercê de gestações e filhos, que ocupavam quase todo o seu tempo, restando muito pouco para que pudessem investir em outras atividades. A partir desta conquista, as mulheres passaram a poder separar os registros do desejo e da reprodução biológica, definindo quando ter filhos e quantos filhos ter (e mais atual ainda: se ter filhos ou não).
Desta forma, as mulheres puderam, também, exercitar a liberdade de se capacitarem intelectualmente, afim de se inserirem no mercado de trabalho de forma mais igual aos homens. As carreiras ganharam, a partir de então, a mesma relevância do casamento. Esse que, por sua vez, passou a acontecer mais tarde na vida das mulheres, pois queriam primeiro consolidar suas carreiras, antes de se lançarem no terreno da maternidade. A liberdade feminina se instituiu assim em larga escala, podendo ser mulher e mãe ao mesmo tempo (Birman, 2007).
Mas, desenhando toda esta trajetória, fica evidente que todas essas mudanças no campo do feminino e o lugar que este passou a ocupar na sociedade, que se culminou também numa importante revolução nos costumes sociais, modificando inclusive aquele conceito de família tradicional nuclear e provocando o exercício amplo e até irrestrito do desejo. Sobre isso, Miller (2006) diz que a família de hoje tem a sua origem no mal-entendido, no não encontro, na decepção pela queda dos ideais.
As mulheres saíram de casa para ir em busca de um projeto identitário legítimo (necessário, justo), mas, em contrapartida, os homens não souberam, ou não puderam voltar para compensar e equilibrar a ausência materna. Vê-se então, realidade mais que cotidiana, uma demanda cada vez maior às creches, escolas, empregados (para aqueles com mais recursos financeiros) ou excesso de atividades programadas, enquanto ferramentas para suprir a ausência das figuras parentais. Neste contexto também é que algumas mulheres/mães passaram a realizar a dupla jornada de trabalho, para suprir as suas ausências (Birman, 2007).
Miller (2006) aponta que a modernidade fez cair a máscara da família clássica, sempre associada a um ideal de harmonia (homem, mulher e criança, produto de seu amor). Mulheres hoje, parecem se desgastar excessivamente, de maneira a perturbar as suas relações: internas (cansaço, culpa, cobranças), com seus parceiros, com seus filhos, com outros familiares ou amigos, enfim, com o mundo em que está inserida.
É evidente então, que os movimentos relativos ao feminino foram desencadeadores de uma nova ordem social, à medida que as mulheres passaram a pleitear um novo lugar, uma nova posição no simbólico da sociedade, um lugar não só de acesso aos direitos, mas um lugar de fala. Uma conquista!
A mulher, porém, que até então era mãe, dona de casa e apoiadora do marido – papel este ainda válido, fundamental e virtuoso (para aquelas que o desejam) de cuidar dos filhos e da casa – agora tem sobre si o peso de todas as escolhas. Pode ser mãe e dona de casa, pode ser provedora/chefe de família, pode ser independente, pode ser só, pode ser profissionalmente bem sucedida, pode dominar todas as áreas. Mas, ser tudo (ou nada) pode ser exaustivo, assim como também pode ser angustiante!
Uma mulher, muito mais que um homem contemporâneo, parece ser obrigada a escolher – entre maternidade, trabalho, casamento, homens; entre se adequar ao papel normativo de mãe/esposa/cuidadora da família e livre trabalhadora/profissional de sucesso. E tais escolhas demandam da mulher urgência, responsabilidade e renúncias – muitas renúncias.
Viver em sociedade, inato e indispensável ao ser humano, requer o exercício da interdependência. Se a mulher ficou mais independente na contemporaneidade, sua independência está em escolher quais prisões móveis quer ocupar: a do casamento (e suas demandas), a de um filho (e suas demandas), do trabalho (e suas demandas), ou até da solidão (que não apresenta menos demandas). O enlace com o Outro – e por conseguinte com o mundo – é o significante da vida, e enlaçar-se dá trabalho, muito trabalho. Para a mulher, nesta reinvenção de seu lugar na sociedade, este enlaçamento é exaustivo, permeado de conquistas e sacrifícios.
Referências bibliográfica:
BIRMAN, Joel. Laços e desenlaces na contemporaneidade. Jornal de psicanálise, v. 40, n. 72, p. 47-62, 2007.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. Boitempo Editorial, 2017.
MILLER, Jacques-Alain. O inconsciente real. Orientação Lacaniana III, n. 9, p. 1-10, 2006.
PENNA, Paula Dias Moreira. A mulher em situação de violência doméstica: um diálogo entre a Psicanálise e o Direito. 2014.
Créditos também à uma publicação de Adrilles Jorge em suas redes sociais que fomentaram a ideia central, o qual, porém, não pôde ser referenciado.