Maná

A vida e a saúde mental das pessoas em situação de rua: uma intervenção intersetorial.

A população em situação de rua é um dos grupos mais afetados pelas problemáticas que atravessam a desigualdade social no nosso país. Os obstáculos a serem enfrentados diariamente pelas pessoas em situação de rua não são nada fáceis e com a situação pandêmica que estamos vivenciando, cada vez aumenta o número de pessoas que se encontram em situação de extrema precariedade social, sem terem condições de se auto sustentarem e muito menos de terem um local digno de moradia. Estas pessoas vivenciam uma história de vida complexa e quase inimaginável para muitos de nós.  De acordo com dados publicados pelo IPEA até o primeiro semestre de 2020, existiam mais de 221 mil pessoas em situação de rua, número este que, até o momento, pode ter triplicado, uma vez que boa parcela dessas pessoas são quase “invisíveis” ou difíceis de ser acessada por profissionais da saúde, assistência social e demais políticas públicas. 

A situação de rua é permeada por complexidades no campo psicológico, social, familiar e físico. As pessoas que se encontram em tal situação, estão em tamanha fragilidade que por mais que verbalizam desejo de mudança de vida tal concretização é algo, na maioria das vezes, longe de seu alcance. Dificultando ainda mais este cenário, muitas das políticas públicas ofertadas, hoje, para pessoas nessas condições, nem sempre contemplam as múltiplas demandas em sua totalidade, pois na maioria das vezes, as ações são realizadas em um contexto setorizado e com objetivos “contrários” ao da garantia de direitos.

Pessoas em situação de rua vivenciam a fome, o frio, o abandono, o medo, o tráfico, o uso de SPA, a prostituição, os furtos, sofrimentos psíquicos e a extrema precariedade de higiene, dignidade e humanidade. Tal fato revela a necessidade de que sejam olhados em sua totalidade, ou seja, que as políticas públicas de assistência social, saúde, educação, habitação e demais, possam, de forma articulada e planejada, olhar para os casos das pessoas em situação de rua e traçar planos de ação para que sejam minimamente “cuidadas” com foco em um plano de trabalho que objetive a saída das ruas. É claro que isto também não se daria de forma simplista, uma vez que as questões vivenciadas por eles, bem como as diferentes situações que leva as pessoas às ruas, dificultam o êxito nas ações das equipes de trabalho, por isso é necessário que a atuação seja planejada e articulada entre os atores que atuam na rede de atendimento e proteção à pessoa em situação de rua.

De acordo com dados publicados pelo IPEA até o primeiro semestre de 2020, existiam mais de 221 mil pessoas em situação de rua

Além dos inúmeros desafios narrados, outro fator de suma importância é a questão da saúde mental. Segundo SANTANA (2014) mais de 68% das pessoas que vivem em condições de precariedade social, mais especificamente em situação de rua, têm algum tipo de transtorno mental e/ou têm patologias, que, ao longo do tempo, podem ser agravadas.

Segundo dados da OMS (Organização Mundial de Saúde) e elucidado por SANTANA (2014) as condições de vida nas ruas colaboram para o desenvolvimento e agravamento dos transtornos mentais que, este por sua vez, pode ser um dos fatores que contribuem para que uma pessoa se mantenha em situação de rua. Percebe-se que é um ciclo difícil de romper e que a situação de rua em si é um fator de risco para transtornos mentais e para o uso problemático de substâncias psicoativas.

Outro ponto relatado pela autora é que, alguns estudos mostram que muitas pessoas em situação de rua apresentam um jeito específico de lidar com problemas que é se afastando deles, evitando-os. Os indivíduos apresentam dificuldades em desenvolver estratégias para solucionar os problemas. Essa dificuldade de lidar com as adversidades contribui para o aumento do consumo de drogas, tanto lícitas quanto ilícitas, pois assim a pessoa pode esquecer momentaneamente do que está causando preocupação. 

Segundo Booti et al. (2009, p. 175), “o álcool e as drogas fazem parte da realidade das ruas, seja como alternativa para minimizar a fome e o frio, seja como elemento de socialização entre os membros dos grupos de rua”. As drogas lícitas e ilícitas possibilitam ao morador de rua a fuga da realidade, além de ser uma das poucas opções de prazer que a sua condição de vida lhe permite, ainda, esta pode ser um dos fatores que leva a pessoa à situação de rua.

Sabe-se que a população de rua é extremamente heterogênea, diversificada, que abrange inúmeras complexidades e o papel do poder público é bastante amplo, pois precisa atuar em um contexto que se apresenta multifacetado, ou seja, não implica apenas na criação de ações que garantam moradias, por exemplo, mas também ações que garantam o acesso à saúde nas ruas, a espaços de convivência, entre outras ações.

Diante do exposto, fica claro quanto é importante o trabalho intersetorial para atender e garantir os direitos das pessoas em situação de rua. Mas primeiro é preciso pontuar o que isto significa. Trabalho intersetorial pressupõe diálogo entre as pessoas e órgãos que atendem tal público, ou seja, comunicação, articulação, possibilitando a descentralização de ações rompendo assim com modelos fragmentados de atuação e gestão dos serviços. Na prática, é reunir o máximo de dados sobre os casos atendidos, realizar reuniões de discussões de casos e pactuar as ações que caberá a cada profissional, bem como as ações em conjunto, visando alcançar os objetivos planejados, ainda, que tais objetivos levem em conta as potencialidades e fragilidades de cada serviço para que as metas não fiquem apenas no “papel”. 

Falarmos de uma atuação intersetorial no contexto de pessoas em situação de rua, ainda é algo que encontrará inúmeros desafios pela frente, pois ainda há muito o que se fazer na articulação de políticas públicas que atenda integralmente este público.

Trabalhar de forma articulada não é uma tarefa tão fácil, afinal as políticas públicas têm suas especificidades que precisam ser respeitadas. Porém, quando se tem profissionais dispostos a pactuar e compartilhar fluxos de atendimento com foco no aprimoramento dos processos de trabalho, podemos dizer que se torna mais viável construir ações efetivas no campo da garantia e acesso dos direitos. Tal ação permite acessar diferentes perspectivas no processo de cuidado, permite maior segurança nas ações, e assim, atuar de forma mais eficiente e responsável. 

É preciso que os municípios caminhem, para alcançar um trabalho intersetorial, para atender integralmente as necessidades da população em situação de rua. Os saberes e conceitos que fundamentam as áreas da Saúde, Assistência Social e demais políticas, pelos profissionais, devem estar relacionados em torno de objetivos compartilhados em prol da pessoa atendida pelos seus respectivos serviços. A prática deve ter como foco a identificação das reais necessidades e demandas das pessoas em situação de rua, as capacidades e possibilidades da rede, os recursos disponíveis, às necessidades e ofertas de serviços específicos, e melhorias na qualidade e humanização do cuidado oferecido. 

Referências Bibliográficas

BOTTI, N. C. L. et al. Condições de saúde da população de rua da cidade de Belo Horizonte. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Florianópolis, 2009. Disponível em: < http://incubadora.periodicos.ufsc.br/ index.php/cbsm/article/view/1141/1383>. 

SANTANA, C. Consultórios de rua ou na rua? Reflexões sobre políticas de abordagem à saúde da população de rua. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 8, p. 1798-1800, ago. 2014.

Saúde mental das pessoas em situação de rua: conceitos e práticas para profissionais da assistência social / Carmen Lúcia Albuquerque de Santana, Anderson da Silva Rosa, organizadores. — São Paulo: Epidaurus Medicina e Arte, 2016.Site do IPEA. População em situação de rua cresce e fica mais exposta à Covid-19. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35811#:~:text=Popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20rua,mais%20exposta%20%C3%A0%20Covid%2D19&text=A%20popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de,pela%20pandemia%20da%20Covid%2D19>.

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